domingo, 31 de janeiro de 2010

Intruso

Chega sempre de surpresa, sem eu saber nem suspeitar quando chega. Só sei que é de surpresa. Nunca transparece seu porquê, ou por quem.
Vem assim, de sopetão e de mim tira tudo. Exige de mim tudo aquilo que tenho e quer mais, sem me oferecer coisa qualquer em troca. Sem nunca deixar cair migalha alguma.
Aparece sempre como um vulto, que passa rápido e misterioso, de forma com que eu nunca possa saber se o vi de fato ou se foi tudo, mais uma vez, fruto da minha imaginação. Nessas horas penso: ando vendo televisão demais, tido discussões demais, tomado calmantes demais e sinto que preciso mudar alguma coisa na minha vida não sei o que, pra fazer parar essas visões estúpidas que eu penso ter. Mas mesmo estúpidas e efêmeras, quase que irreais, essas visões vêm.
Vêm, e me fazem parar tudo. Me pegam no meio do expediente, bem no farol aberto, no exato momento da inspiração. Nele, as visões esvaziam meus pulmões - aquilo que as provoca acredito que se alimenta do ar que eu iria respirar. Deixa-me inerte, abestalhado e sem fôlego nenhum. Faz meus braços e pernas e pés e mãos e peito formigarem reclamando a falta do oxigênio que lhes foi negado. Ar roubado no último instante, quando se tem quase a certeza de possuí-lo.
Esse vulto não me deixa saborear nem por um instante o gosto de sua companhia. Companhia que mesmo nunca concreta me enche de fome e sede de algo que eu não sei o que é.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Furtacor

Por alguma vontade oculta e superior da Natureza, por algo pregado na gente desde o início dos tempos, seja ele o Éden ou o aparecimento de um monolito capaz de despertar consciência em um primata ou qualquer evento inexplicável da sua preferência, estamos fadados a ver o mundo - e em especial as pessoas - através de suas representações, daquilo que nos é mostrado. Há também, claro, o efeito da nossa imaginação sobre essas imagens, mas mesmo o trabalho da mente mais criativa depende do negativo bruto, da nudez da pedra de mármore a ser trabalhada. A imaginação é na verdade mais importante do que o que nos é dado por nossos - esperançosamente confiáveis- sentidos, seria triste demais se as coisas fossem exatamente - e tão somente - aquilo que parecem ser. Por mais rica em cores e formas e texturas que venham a ser nossas almas... bem, exatamente por termos almas ricas em cores e formas e texturas, nunca sabemos com que roupa vesti-las. Dependemos sempre da iluminação provida pelo céu a cada dia. É preciso combinar com as cores de cada paisagem. É preciso, também, nos ajustar à lente dos olhos de quem nos vê para quem sabe enfim deixar nossa alma nítida em seu peito e nossa marca em sua memória.
Quem sabe talvez se o mundo se apagasse num breu e pudéssemos nos aproximar independente dos sorrisos ou dores ou espinhos que vestimos seria como num baile de máscaras. Assim eu seria da maneira que você me quer, seja você quem for, seja o que Deus quiser. Até lá, me diz o que eu faço com essa falta de vontade de querer enxergar aquilo que você me mostra.

PS: "No escuro as coisas esquecem de si mesmas para se tornarem apenas coisas" Caio Fernando Abreu

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sou

"Tudo que irá existir
Tem uma porção de mim
Tudo que parece ser eu
É um bocado de alguém

Tudo que eu sei me diz do que sou
Tudo que eu sou também será seu"

Móveis Coloniais de Acaju


Percebo que, diante da efemeridade que são os momentos da vida, poucas vezes consigo viver por completo. Vivo quase que em duas metades; sendo elas os momentos em sí e a memória que guardo deles. Falta de vontade ou escassez de consciência e sentimentos, pra viver os momentos em sí, de certo não são a causa, já que eu sei que desses disponho de sobra e, do último, às vezes mais do que eu gostaria. Acontece que me falta concentração. Concentração pra me manter por inteiro dentro daquilo que acontece em volta de mim e, portanto, fora de mim mesmo. Mas não posso ser sempre todo amores ou cruel ou bem humorado ou o que for, com o mundo. Não consigo ser todo uma coisa só. Não consigo ser todo para um lado só. Sempre sou uma soma infinita e inexata de sentimentos e sensações e perspectivas. Sempre sou pra dentro e pra fora ao mesmo tempo, não sei ser unilateral. Por favor, me tirem de mim! Na verdade, nem quando tento ser só eu mesmo - ou pra mim mesmo - eu consigo, não sei ser ou o que é eu-mesmo. Às vezes até a minha voz me lembra alguém. Talvez seja porque eu viva pela metade. Talvez seja porque, por guardar sempre na memória uma parte do que vivo, acabo sendo um pouco do que eu tenho em volta e por fora. E assim, vivendo constantemente e parcialmente, sou por completo.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Quase um pássaro

"Venha meu amigo
Deixa esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes
Antes de pensar"
Chico Buarque


Quase um pássaro, sabiá que se recusa a cantar em sua primeira primavera. Por timidez ou medo ou esquecimento. Convenceu-se ou foi convencido de que não se deve dar liberdade às asas e voar. Como poderia? A queda seria muito dura e seu corpo leve jamais suportaria, seu coração delicado de passarinho não sobreviveria ao susto.
Vive assim, nunca muito longe do ninho, rendendo-se talvez a algumas aventuras esporádicas, mas nada nunca ousado. Nunca nada como voar. Voar é perigoso demais, aceitava isso como quem acorda de um sonho bom antes mesmo de fechar os olhos, por medo de ter pesadelos.
Os outros passarinhos viviam a cantar coisas belas, lembranças costuradas com a brisa que acariciou suas penas em seus voos de árvore em árvore. Lembranças tão lindas, tão incríveis, às vezes, sim, sisnistras, mas sempre fascinantes. Sempre vindas das alturas mais inimagináveis para aqueles que nunca voaram.
Pois, quando se é um passarinho, é um desperdício viver com os pés no chão.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Saudade é um pouco como fome

Tenho saudades daquilo que ainda não conheci
Tenho abstinência da droga que ainda não usei
Sofro pelo amor que eu ainda não encontrei

E como impõe o fino andar da vida, fez-se mais uma separação, pois a lei natural dos encontros vem sempre acompanhada da dos desencontros, que é tão natural quanto a primeira, que é tão natural quanto qualquer outra coisa na vida, por fazerem parte dela. Mas, por mais mundanos que sejam os desencontros, nem todos nós estamos acostumados a eles. Outro dia flagrei gente se desencontrando e disseram, pasmem, vou-sentir-saudades. Pobres, se soubessem um pouco mais das naturalidades da vida saberiam que saudades não se deixam ser previstas. Nunca se flagraram, pois, sentindo uma falta imensa do barulho-insuportável-de-são-paulo? Ou nunca se surpreenderam quando não sentiram nenhuma ligeireza no coração (sabe?) diante da lembrança de alguém que já foi muito-especial-na-minha-vida? Esquecem-se de lembrar (que clichezinho mais barato) de que lembranças não são sinônimo de saudades. Pobres coitados, que vivem da saudade da saudade que sabem que nunca sentiram(ão).

"Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida." Clarice Lispector

domingo, 10 de janeiro de 2010

After the ending

Não sei se o meu coração está leve ou vazio.

2+2=5

"Don't question my authority or put me in the box
Cozimnot
Cozimnot
Oh go and tell the king that the sky is falling in
When it's not"
Radiohead


De tando repetir e se enganar e bater o pé.
De tanto lutar pra formular ideias de um jeito convincente.
Tem quem acredite nas próprias mentiras.
Não critico aqui quem sonha com o impossível.
Critico, sim, quem se faz acreditar que o possível é inalcançável.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

You make me free love

Às vezes precisamos nos prender em alguém para nos libertamos de nós mesmos. Viver pra dentro dói, amassa, aperta, sufoca. A vida seria muito fácil se nós cabessemos dentro de nós mesmos. Se eu não me deixo ficar sozinho não é por carência, é pura claustrofobia.

Rasuras

"Take it easy baby
Take it as it comes
Don't move to fast
You want your love to last
Oh, you've been movin' too fast"
The Doors


Sinto como se eu estivesse planejando muito mais do que eu posso fazer e por isso, talvez, eu acabo não conseguindo nada do que eu queria. Por, infelizmente, ter uma ideia quase nítida dos meus limites deixo de fazer muito daquilo que eu gostaria por saber que eu não conseguiria fazer tudo e na hora de escolher prioridades fico assim, parado, sem saber quais escolhas tomar, nem quais caminhos seguir. Eu não me importaria de ter limites mais, digamos, limitados, se eles fossem pelo menos embaçados, esfumaçados, desfocados, e, portanto, passíveis de expansão. É difícil mudar o que já está quase definido. Quando escolho algo fico com medo de ter escolhido errada e penso em voltar atrás, mas não dá, a vida só anda pra frente. O problema é que o mundo é tão grande que na tentativa de abraçá-lo acabo empurrando-o, ou sou eu que o empurro quando ele tenta me abraçar? Sinto que meu espírito não sabe planejar, só consigo escrever, por exemplo, quando abro uma página em branco e não faço nenhuma ideia do que vou escrever. Esse ano eu não fiz resoluções de ano novo, esse ano eu coloquei uma pulseirinha do Senhor do Bomfim e não fiz pedido, esse ano não ouvi promessas nem prometi nada a ninguém, desse ano eu não espero nada, quem sabe então, assim, eu possa aproveitar mais, e me surpreender mais, com o que vier dele. E por que não ousar dizer que posso me surpreender comigo mesmo? Cansei de me decepcionar com as pessoas, quem sabe a surpresa venha de dentro.

sábado, 2 de janeiro de 2010

In-felicidade

"Pensei numa coisa tão bonita que até nem compreendi. E terminei esquecendo o que era." Clarice Lispector

A felicidade é uma promessa impossível.
É tão passageira e efêmera que chega a não-ser.
A infelicidade, está sim, está sempre por aí,
Nos rodeando.
A diferença entre as duas pode ser, sim, somente um prefixo,
Mas é um prefixo insistente, pegajoso e ganancioso
Que de tão presente acaba sendo aceito, e fazendo parte dela, como um irmão siamês ou coisa assim.
O mais próximo que conseguimos chegar da felicidade, por um período de tempo quase satisfatório, é algo mais ou menos assim: in-felicidade.

PS: Só pra ser irônico, feliz 2010.