quarta-feira, 10 de novembro de 2010

pois então reclamas, triste, destes olhos de fera ferida!

pois então reclamas, triste,
destes olhos de fera ferida!

olhos feridos
por saberem, relutantemente,
que não são de fera.

olhos que também ferem.
pois, não fosse através deles,
jamais enxergaria a ferida
aberta para além deles.

olhos conscientes,
que querem esquecer
de si mesmos.
deixar de ser o que não deveriam
-qualquer coisa como "espelhos-da-alma"-;
e voltar a ser somente córnea, íris, cristalino, retina...

e, nesse desespero,
se fecham.
se fecham porque cansaram
de incomodar os outros órgãos.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

primavera

avisto lá do meu canto: doce encanto?
e ai, pronto! eis então que me encontro
confuso entre o deleite e a loucura
de quem encontra aquilo que procura.

quem sabe agora essa vida,
tão regrada e decassílaba
(quando muito, redondilha),
em face de tal encanto
vire um verso livre e branco?

domingo, 19 de setembro de 2010

só peço que não deixes que eu te engane

só peço que não deixes que eu te engane
enganar-se, comigo, não seria acreditar naquilo que digo
muito pelo contrário, seria duvidar de sua veracidade
toda mesquinhez que sai da minha boca tem raízes muito profundas
meus comentários maldosos são resultado de anos de pensamentos tortos sobre as pessoas
se digo uma injúria boba, é porque sou capaz de ignomínias vergonhosas
claro que nem tudo que falo é pura verdade, há também o que possa ser chamado de mentira
todas elas são, porém, devidamente anunciadas
não esperes, portanto, que a sombra que vês em mim seja passageira
até dizem que é esse o tipo de coisa que piora com a idade
e nem eu posso imaginar as desonras que ainda posso fazer passar aqueles que me cercam
aviso-te cedo, não deixes que eu te engane
já não são poucos aqueles que duvidaram de mim
tomaram meus insultos por brincadeira
e os meus preconceitos por ironia
deixaram que minha sinceridade doentia os ofendesse em público
e mesmo assim acharam que eu estava sendo cômico
decepcionaram-se todos quando precisaram de minha mão de amigo
pasmos ao descobrir que nunca a tiveram
então, não deixes que eu te engane
supura cada ferida que eu abrir
mas não se esqueça também de cada elogio
pois eles têm raízes muito profundas também
se num futuro qualquer tiveres queixas contra mim, não exites em dizê-las
só não digas que eu não te avisei

domingo, 5 de setembro de 2010

sonho acordando

se quando durmo,
sonho com ela;
tendo-a ao lado,
sonho acordado.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

eco

outro dia lancei uma pergunta ao abismo e ele me respondeu. do fundo de sua imensidão jogou contra mim as mesmas palavras que eu havia dito, distorcidas por terem saído de seus desconhecidos contornos. os vales e montanhas e um sem fim de formas que habitam esse abismo escuro remoldaram minha pergunta e então a lançaram de volta contra mim. era, porém, a mesma pergunta. penso então que a vida é como esse esfíngico abismo que encarei certo dia. coisa disforme e escura, que só conheço pelo modo que ela distorce aquilo que lanço contra ela. se não a provoco, ela permanece muda; como o abismo ficaria sem a minha pergunta. quieta, a vida não me revela nada. ela nada mais é do que o reflexo daquilo que faço dela - ou, como dizem, vivo. e então, leitor, me perguntas pra que preciso dessa tal de vida, mera imitadora de mim? acontece que, só quando lancei minha pergunta ao abismo e dele recebi de volta as mesmas palavras, comecei a pensar na resposta.

domingo, 29 de agosto de 2010

sem títulos

por ter andado sempre reto
a ver e viver sempre em frente
olhando fixo a vida, como fosse estrada
temo o dia em que me cansar
e deixar-me parar depois da próxima passada
e então, sem resistir
quem sabe por saudade
ou misto de esquecimento e curiosidade
inclinar-me, de modo a olhar para trás
e fitar o meu passado
a me encarar, com o olho esbugalhado
sem sorriso no rosto
desgostoso daquilo que vê

segunda-feira, 26 de julho de 2010

me consumi(ram)

me vendi inteiro
por puro consumismo
troquei-me todo por dinheiro

fui às compras
os mais belos apetrechos
as mais lindas joias
as mais finas roupas para me vestir

mas quando fui provar
eu não estava ali
na ânsia do consumo
me consumi

sexta-feira, 9 de julho de 2010

ou mesmo qual

é que eu te quero não sei quando
é que eu te quero não sei onde
é que eu te quero não sei como
só sei que quero
só sei querer

é que eu te quero não sei se
é que eu te quero não sei para
é que eu te quero não sei quanto
só sei que quero
só sei querer

é que eu te quero
só não sei quem

segunda-feira, 28 de junho de 2010

filme censurado

não sei o que pensar
o problema é que eu também não faço ideia do que você pensa
e por isso não tenho nem um ponto de partida
não tenho nada
mas uma vez me disseram que o nada tudo vira
mas uma vez eu mesmo disse que do nada, nada vem
e então não sei se acredito no que dizem ou no que digo
só sei que, pra mim, você é filme censurado
que já passou

quinta-feira, 24 de junho de 2010

every breath i take

vinha sentindo essa dificildade de respirar já faz um tempo. vinha sendo lentamente sufocado sem saber como nem por que ou por quem. primeiro pensei no cigarro. mas já faz tanto tempo que parei de fumar, querida. fumar tinha sido uma das melhores escolhas da minha vida, nada como um vício para te sustentar quando se está na merda, não? e por estar tão constantemente na merda percebi que fumar me mantinha em pé. mas você desaprovava tanto e me virava a cara quando me via com um cigarro e me negava os lábios diante do gosto de cinzas. então parei. parei e mesmo depois de tanto tempo ainda sinto essa dificuldade pra respirar.
aí eu ouvi uma conversa outro dia em que disseram que a cidade faz mal. ouvi um cara dizer pro outro que na cidade tinha essa tal de poluição, que a fumaça dos carros vem direto pra gente e circula dentro de nós, nos sufocando. e disse também que viver em são paulo era como fumar um maço por dia. e eu que pensava que deixar o cigarro iria me fazer parar de fumar, veja só.
aí resolvi sair. resolvi fugir dessa cidade que nos sufoca. mesmo tendo que largar toda essa minha rotina, que - principalmente depois de parar de fumar - tinha sido nesses tantos anos em que eu a mantive quase como um vício. desses que nos sustentam. joguei tudo pro alto, juntei minhas coisas, poucas. não levei nem a caixa de incenso, porque ela também é do tipo de coisa que faz fumaça.
eu fui pra praia.
e fui pro campo.
e fui pras montanhas e pra floresta e pras savanas e pro deserto.
puta que pariu, visitei todos os ecossistemas desse planeta enorme e não consegui encontrar um cantinho sequer em que eu poderia respirar, assim, pleno e limpo, como um dia respirei. como tenho certeza que um dia respirei, te juro.
e só então quando volto pra essa cidade de merda cheia de cigarros, escapamentos, chaminés, incensos e todo o tipo de coisa que possa ser incendiada, só quando volto então, por um momento, eu consigo respirar, assim, de verdade.
foi bem no momento em que te reencontrei.
aí então eu percebi.
só com teu coração batendo colado no meu peito pra eu parar de sufocar.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

mixtape #2

dessa vez não explico nada

01. tal como nazareth - cadáver pega fogo durante o velório
02. ou nada - romulo fróes
03. qualquer coisa - caetano veloso
04. quase nada meu - nekropolis
05. socorro - arnaldo antunes
06. don't be that way - delicatessen
07. miopia - sonantes
08. holding someone's hair back - circa survive
09. dói - cidadão instigado
10. there she goes again - the velvet underground
11. summer 78 - yann tiersen
12. untitled 8 - sigur rós

aprox 49 min
55,1 mb

download

pra mim

quando se pode mais
se for pouco
é pouco demais

domingo, 20 de junho de 2010

so what

...ele então abraça a realidade como quem coloca um travesseiro na cara. tampando os ouvidos e bloqueando a respiração. num desespero solitário, numa tentativa de matar algo dentro de si mesmo. algo que não permite que ele alcance a realidade, a não ser dessa forma sufocante. percebe que talvez se trate do seu pensar incessante, do seu pensar insistente, que vive a dissipar a realidade, reduzí-la em meras interpretações e teorias e vã filosofia.
talvez seja por isso que gosta tanto de música alta. por ser uma forma de se ensurdecer e deixar de ouvir a si mesmo...

segunda-feira, 14 de junho de 2010

fim-de-mim

você sempre me surge em momentos em que eu esvazio meu pensamento. quando ouço uma música, quando respiro fundo enquanto caminho nas ruas dessa cidade - que a cada dia torna mais difícil essa nossa tarefa de respirar - ou quando paro para admirar algo bonito que passa, pode ser uma moça jovem ou carro velho, cada um com sua beleza. momentos esses em que eu sinto muito mais do que penso. ouço a música e respiro o ar e vejo coisas belas com meus ouvidos, meus pulmões e meus olhos, não faço nada disso com o pensar. e, orgulhoso que é, meu pensamento fica todo sentido por ter sido deixado de lado nesses momentos e então faz com que eu me lembre de você. traz a sua lembrança para me lembrar que a vida é dura, que o que é bom dói e sempre acaba. pra me lembrar que não posso me entregar a esses momentos de plena felicidade de que são feitos o ouvir o respirar e o olhar. pra me lembrar que existe todo um sofrimento que, dizem, nos santificará quando o fim-dos-tempos vier.e eu então finjo que acredito e aceito esse sofrimento, desejando que pelo menos até o fim-dos-tempos chegue o dia em que eu te esquecerei.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

às vezes você me pergunta porque é que eu sou tão calado

tenho medo de falar algo como eu-não-te-amo-mais
e você entender algo como eu-nunca-te-amei
e eu concluir algo como eu-nunca-soube-amar-ninguém

quinta-feira, 3 de junho de 2010

ia-me embora

ia-me embora
mas aqui onde estou
já se parece muito com pasárgada
aqui eu sinto que posso ter tudo
mas mesmo podendo
ter pra mim o mundo
não me encontro em nada
só me encontro nesse abismo
entre a vida e o escapismo

quarta-feira, 2 de junho de 2010

entrar sem bater

 entrar sem bater
e então sair
pura e simplesmente
por medo de ficar

segunda-feira, 17 de maio de 2010

silenciado

não vou buscar palavras pra dizer o que sinto
se fosse um sentimento que precisasse de palavras para ser explicado
eu não sentiria a necessidade de explicá-lo

sexta-feira, 7 de maio de 2010

dança

se a paixão não é eterna
é terna a esperança

considerando a situação

não tem condição!
o meu amor tem pavor
do seu coração

segunda-feira, 3 de maio de 2010

se eu disser quem sou

se eu disser quem sou
ao invés de ficar sendo
não serei mais que um pensamento

de luto

escrevi algo e apaguei
agora não tenho mais como saber o que era
numa combinação de autodepreciação e memória fraca
perdi registro de um sentimento-ideia-imagem que deu as caras na minha mente
perdi algo que por um momento foi parte de mim
algo que era todo meu e poderia ter sido tudo de mim
lembro que era algo bruto, sim
mas quem sabe poderia ter beleza
pois se foi
no seu lugar ficou um arrependimento e uma interrogação

domingo, 2 de maio de 2010

ainda sem quase nada meu

"se me perguntasse como vai a vida
'anda torta' eu diria"
Nekropolis

"Não que estivesse triste, só não sentia mais nada."
Caio F.


hoje eu sei que estou pela metade
fico fazendo hora, chorando, rindo
fingindo a dor que eu queria estar sentindo
afundado em plena falsidade

não sou nada daquilo que pareço
menos que um reflexo de mim
um abismo onde não vejo fim
e nele caio e desapareço

fico sem ter a que mal ser vassalo
não me recordo se algum dia amei
ou se um dia fui tudo que falo

não sou um bobo nem faço-me rei
imagino ter um amor que calo
faço-me escravo da dor que fingirei

domingo, 25 de abril de 2010

Para além da curva da estrada

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.
Alberto Caeiro

A esmo

então há de ter metafísica em tudo em nossas vidas?
aquela mão que me foi extendida então, era para ser ignorada como foi?
é difícil pensar que coisas poderiam ser diferentes quando já não podem mais
não encontro argumentos pra negar predestinação se as coisas acontecem como acontecem uma vez só
sendo o que são na hora que foram
não sei dizer que poderiam ter acontecido diferente, uma vez que foram
perguntar-me coisas como "e se?" me parecem então inúteis
e me sinto mais uma vez como uma partícula num universo
somos só um momento no tempo
temos sempre possibilidades e escolhas na nossa vida, sim
mas, uma vez feitas, são só uma
intrínsecas ao que somos
e me encontro preso
não sendo mais do que um escravo do meu passado
que passou a esmo

quarta-feira, 21 de abril de 2010

for no one

deixa de enclausurar-te
deixa de enganar-te
pensando que ficar parada no mesmo lugar
não é mais que a tua maneira patética de fugir

quando te encontro, foges
e é fugindo que nunca vais te encontrar

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O Nada

Se o nada fosse verbo, eu nadaria.

domingo, 18 de abril de 2010

Cul-de-sac

Se contrario a mim mesmo
só pra provar (a mim mesmo)
que sou capaz disso,
não estou sendo contraditório?

Enxugar

Mergulho em você
Nado até a pele enrugar
Nado, nado e nada

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Desatados

quero tudo
se for parte
não é nós

nós deve ser no plural
se for no singular
é nó

terça-feira, 6 de abril de 2010

Fodeu

a vontade me bateu
como eu faço pra sanar
se o que eu quero não sou eu?

domingo, 28 de março de 2010

No limiar entre a paz e a loucura

Esqueço nomes
Esqueço razões
Esqueço dos meus limites
Não sei onde acabo
Ou até onde ainda "sou eu"
Esqueço-me de tudo
Esqueço até dos sons - fora os seus
Que por serem tão meus, pra mim
Fazem-me esquecer de mim

terça-feira, 23 de março de 2010

Minimizando-me

tenho aceitado perdas e ganhos
tão fácil
de tamanhos tão proporcionais
que idolatro cada assimetria
exalto falhas graves
golpes de estado, revoluções, entraves
prender-me no inferno, me cegar com a luz do dia
tremer no inverno, chuva de canivete
vou me oferecer a ogum pra ser dividido em sete
algo assim que me torne pequeno
pra eu depois enxergar os minimos detalhes
e me esconder na tua pele
teus poros serão minha toca
e teus pelos me levarão aos céus
cada farpa, antes cômodos incômodos
quando eu me encontrava tão imenso
seriam agora, pequeno, um corte profundo
uma faca no peito
e quando meu sangue escorresse
você sentiria cócegas e sorriria
e eu seria então feliz
por saber que o meu sofrer tão pequenino
disfarçou sua grandeza com um gesto de criança

terça-feira, 16 de março de 2010

Faça, fuce, force

Faça, fuce, force, mas,
Não fique na fossa
Faça, fuce, force, mas,
Não chore na porta
Faça, fuce, force, vá!
Derrube essa porta
Trace, fuce, force, vá!
Que essa chave é torta*

E a fechadura, gasta.

Faça, fuce, forçe - Raul Seixas

sexta-feira, 12 de março de 2010

Imbróglio

Muita sinceridade e pouco olhos-nos-olhos.
E, assim, mesmo a sensação de muito-mais-e-melhor não traz orgulho algum.
Aquilo que é efêmero costuma ser bom, mas é inevitavelmente pouco.
E o quero-mais é mais uma dúvida do que um gosto.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Já vou

E por perde-la tanto, mesmo estando comigo sei que ela já não é minha. Mesmo assim, quem diria que minha pele salgada de suor e seu coração salgado de lágrimas dariam em alguma coisa. Sempre fui um rítmo insistente, forte e descompasado e ela, uma melodia linda, quase clássica. Já tivemos, ou ao menos pensávamos ter, alguma ligação especial, íntima. Carne e unha. Hoje, somos passado que ainda não passou. Como uma roupa velha, manchada e apertada que eu insisto em guardar na gaveta. Ela toda é para mim algo como uma caixa de lembranças - boas e ruins, e eu sinceramente não sei de qual tipo temos mais. Lembranças, no nosso caso, não são saudade. São cicatrizes.
Hoje eu sei que o que tinhamos que ser, se foi.

domingo, 31 de janeiro de 2010

Intruso

Chega sempre de surpresa, sem eu saber nem suspeitar quando chega. Só sei que é de surpresa. Nunca transparece seu porquê, ou por quem.
Vem assim, de sopetão e de mim tira tudo. Exige de mim tudo aquilo que tenho e quer mais, sem me oferecer coisa qualquer em troca. Sem nunca deixar cair migalha alguma.
Aparece sempre como um vulto, que passa rápido e misterioso, de forma com que eu nunca possa saber se o vi de fato ou se foi tudo, mais uma vez, fruto da minha imaginação. Nessas horas penso: ando vendo televisão demais, tido discussões demais, tomado calmantes demais e sinto que preciso mudar alguma coisa na minha vida não sei o que, pra fazer parar essas visões estúpidas que eu penso ter. Mas mesmo estúpidas e efêmeras, quase que irreais, essas visões vêm.
Vêm, e me fazem parar tudo. Me pegam no meio do expediente, bem no farol aberto, no exato momento da inspiração. Nele, as visões esvaziam meus pulmões - aquilo que as provoca acredito que se alimenta do ar que eu iria respirar. Deixa-me inerte, abestalhado e sem fôlego nenhum. Faz meus braços e pernas e pés e mãos e peito formigarem reclamando a falta do oxigênio que lhes foi negado. Ar roubado no último instante, quando se tem quase a certeza de possuí-lo.
Esse vulto não me deixa saborear nem por um instante o gosto de sua companhia. Companhia que mesmo nunca concreta me enche de fome e sede de algo que eu não sei o que é.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Furtacor

Por alguma vontade oculta e superior da Natureza, por algo pregado na gente desde o início dos tempos, seja ele o Éden ou o aparecimento de um monolito capaz de despertar consciência em um primata ou qualquer evento inexplicável da sua preferência, estamos fadados a ver o mundo - e em especial as pessoas - através de suas representações, daquilo que nos é mostrado. Há também, claro, o efeito da nossa imaginação sobre essas imagens, mas mesmo o trabalho da mente mais criativa depende do negativo bruto, da nudez da pedra de mármore a ser trabalhada. A imaginação é na verdade mais importante do que o que nos é dado por nossos - esperançosamente confiáveis- sentidos, seria triste demais se as coisas fossem exatamente - e tão somente - aquilo que parecem ser. Por mais rica em cores e formas e texturas que venham a ser nossas almas... bem, exatamente por termos almas ricas em cores e formas e texturas, nunca sabemos com que roupa vesti-las. Dependemos sempre da iluminação provida pelo céu a cada dia. É preciso combinar com as cores de cada paisagem. É preciso, também, nos ajustar à lente dos olhos de quem nos vê para quem sabe enfim deixar nossa alma nítida em seu peito e nossa marca em sua memória.
Quem sabe talvez se o mundo se apagasse num breu e pudéssemos nos aproximar independente dos sorrisos ou dores ou espinhos que vestimos seria como num baile de máscaras. Assim eu seria da maneira que você me quer, seja você quem for, seja o que Deus quiser. Até lá, me diz o que eu faço com essa falta de vontade de querer enxergar aquilo que você me mostra.

PS: "No escuro as coisas esquecem de si mesmas para se tornarem apenas coisas" Caio Fernando Abreu

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sou

"Tudo que irá existir
Tem uma porção de mim
Tudo que parece ser eu
É um bocado de alguém

Tudo que eu sei me diz do que sou
Tudo que eu sou também será seu"

Móveis Coloniais de Acaju


Percebo que, diante da efemeridade que são os momentos da vida, poucas vezes consigo viver por completo. Vivo quase que em duas metades; sendo elas os momentos em sí e a memória que guardo deles. Falta de vontade ou escassez de consciência e sentimentos, pra viver os momentos em sí, de certo não são a causa, já que eu sei que desses disponho de sobra e, do último, às vezes mais do que eu gostaria. Acontece que me falta concentração. Concentração pra me manter por inteiro dentro daquilo que acontece em volta de mim e, portanto, fora de mim mesmo. Mas não posso ser sempre todo amores ou cruel ou bem humorado ou o que for, com o mundo. Não consigo ser todo uma coisa só. Não consigo ser todo para um lado só. Sempre sou uma soma infinita e inexata de sentimentos e sensações e perspectivas. Sempre sou pra dentro e pra fora ao mesmo tempo, não sei ser unilateral. Por favor, me tirem de mim! Na verdade, nem quando tento ser só eu mesmo - ou pra mim mesmo - eu consigo, não sei ser ou o que é eu-mesmo. Às vezes até a minha voz me lembra alguém. Talvez seja porque eu viva pela metade. Talvez seja porque, por guardar sempre na memória uma parte do que vivo, acabo sendo um pouco do que eu tenho em volta e por fora. E assim, vivendo constantemente e parcialmente, sou por completo.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Quase um pássaro

"Venha meu amigo
Deixa esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes
Antes de pensar"
Chico Buarque


Quase um pássaro, sabiá que se recusa a cantar em sua primeira primavera. Por timidez ou medo ou esquecimento. Convenceu-se ou foi convencido de que não se deve dar liberdade às asas e voar. Como poderia? A queda seria muito dura e seu corpo leve jamais suportaria, seu coração delicado de passarinho não sobreviveria ao susto.
Vive assim, nunca muito longe do ninho, rendendo-se talvez a algumas aventuras esporádicas, mas nada nunca ousado. Nunca nada como voar. Voar é perigoso demais, aceitava isso como quem acorda de um sonho bom antes mesmo de fechar os olhos, por medo de ter pesadelos.
Os outros passarinhos viviam a cantar coisas belas, lembranças costuradas com a brisa que acariciou suas penas em seus voos de árvore em árvore. Lembranças tão lindas, tão incríveis, às vezes, sim, sisnistras, mas sempre fascinantes. Sempre vindas das alturas mais inimagináveis para aqueles que nunca voaram.
Pois, quando se é um passarinho, é um desperdício viver com os pés no chão.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Saudade é um pouco como fome

Tenho saudades daquilo que ainda não conheci
Tenho abstinência da droga que ainda não usei
Sofro pelo amor que eu ainda não encontrei

E como impõe o fino andar da vida, fez-se mais uma separação, pois a lei natural dos encontros vem sempre acompanhada da dos desencontros, que é tão natural quanto a primeira, que é tão natural quanto qualquer outra coisa na vida, por fazerem parte dela. Mas, por mais mundanos que sejam os desencontros, nem todos nós estamos acostumados a eles. Outro dia flagrei gente se desencontrando e disseram, pasmem, vou-sentir-saudades. Pobres, se soubessem um pouco mais das naturalidades da vida saberiam que saudades não se deixam ser previstas. Nunca se flagraram, pois, sentindo uma falta imensa do barulho-insuportável-de-são-paulo? Ou nunca se surpreenderam quando não sentiram nenhuma ligeireza no coração (sabe?) diante da lembrança de alguém que já foi muito-especial-na-minha-vida? Esquecem-se de lembrar (que clichezinho mais barato) de que lembranças não são sinônimo de saudades. Pobres coitados, que vivem da saudade da saudade que sabem que nunca sentiram(ão).

"Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida." Clarice Lispector

domingo, 10 de janeiro de 2010

After the ending

Não sei se o meu coração está leve ou vazio.

2+2=5

"Don't question my authority or put me in the box
Cozimnot
Cozimnot
Oh go and tell the king that the sky is falling in
When it's not"
Radiohead


De tando repetir e se enganar e bater o pé.
De tanto lutar pra formular ideias de um jeito convincente.
Tem quem acredite nas próprias mentiras.
Não critico aqui quem sonha com o impossível.
Critico, sim, quem se faz acreditar que o possível é inalcançável.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

You make me free love

Às vezes precisamos nos prender em alguém para nos libertamos de nós mesmos. Viver pra dentro dói, amassa, aperta, sufoca. A vida seria muito fácil se nós cabessemos dentro de nós mesmos. Se eu não me deixo ficar sozinho não é por carência, é pura claustrofobia.

Rasuras

"Take it easy baby
Take it as it comes
Don't move to fast
You want your love to last
Oh, you've been movin' too fast"
The Doors


Sinto como se eu estivesse planejando muito mais do que eu posso fazer e por isso, talvez, eu acabo não conseguindo nada do que eu queria. Por, infelizmente, ter uma ideia quase nítida dos meus limites deixo de fazer muito daquilo que eu gostaria por saber que eu não conseguiria fazer tudo e na hora de escolher prioridades fico assim, parado, sem saber quais escolhas tomar, nem quais caminhos seguir. Eu não me importaria de ter limites mais, digamos, limitados, se eles fossem pelo menos embaçados, esfumaçados, desfocados, e, portanto, passíveis de expansão. É difícil mudar o que já está quase definido. Quando escolho algo fico com medo de ter escolhido errada e penso em voltar atrás, mas não dá, a vida só anda pra frente. O problema é que o mundo é tão grande que na tentativa de abraçá-lo acabo empurrando-o, ou sou eu que o empurro quando ele tenta me abraçar? Sinto que meu espírito não sabe planejar, só consigo escrever, por exemplo, quando abro uma página em branco e não faço nenhuma ideia do que vou escrever. Esse ano eu não fiz resoluções de ano novo, esse ano eu coloquei uma pulseirinha do Senhor do Bomfim e não fiz pedido, esse ano não ouvi promessas nem prometi nada a ninguém, desse ano eu não espero nada, quem sabe então, assim, eu possa aproveitar mais, e me surpreender mais, com o que vier dele. E por que não ousar dizer que posso me surpreender comigo mesmo? Cansei de me decepcionar com as pessoas, quem sabe a surpresa venha de dentro.

sábado, 2 de janeiro de 2010

In-felicidade

"Pensei numa coisa tão bonita que até nem compreendi. E terminei esquecendo o que era." Clarice Lispector

A felicidade é uma promessa impossível.
É tão passageira e efêmera que chega a não-ser.
A infelicidade, está sim, está sempre por aí,
Nos rodeando.
A diferença entre as duas pode ser, sim, somente um prefixo,
Mas é um prefixo insistente, pegajoso e ganancioso
Que de tão presente acaba sendo aceito, e fazendo parte dela, como um irmão siamês ou coisa assim.
O mais próximo que conseguimos chegar da felicidade, por um período de tempo quase satisfatório, é algo mais ou menos assim: in-felicidade.

PS: Só pra ser irônico, feliz 2010.